500-Nen no Itonami - Clube de Leitura

este texto faz parte do desafio do clube de leitura realizado no final de dezembro/18 e início de janeiro/19

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Robôs, naves, guerras, armas poderosas, neons, máquinas de viajar no tempo e longos arranha-céus são imagens que costumam vir as nossas cabeças quando falamos em ficção científica. Mas o que há de fascinante nesta temática além de um maquinário e progresso tecnológico, que já foi tão explorada, desde metropolis a black mirror?

Um ponto inicial comum dessas narrativas é o de que as máquinas surgem para servir a humanidade, de início para produção em escala - como as indústrias, executando o sistema fordista e reduzindo a necessidade de pessoas nas atividades mais técnicas, seguindo para atividades domésticas que facilitam a vida do trabalhador depois de um dia exaustivo - aqui entram os assistentes de faxina, smart tvs, e depois para as necessidades mais íntimas, como o acesso ao ciclo de amizades, como as redes sociais, e os tão futuristas androides que auxiliam emocionalmente a humanidade. Partindo do ponto em que as máquinas surgiram originalmente para servir os humanos em atividades operárias, e depois para equilibrar as emoções humanas, observamos na ficção que essas ferramentas são mecanizadas, e que por isso não podem ser como nós, não podem refletir sobre suas ações, por mais bem programadas que sejam. Sendo assim, a humanidade é o contraponto do que são as máquinas, pois elas não contém nossa complexidade orgânica e estrutura social. Robô algum, vai ser fundamentalmente humano.

Visitaremos o mangá 500-Nen no Itonami (O Romance de 500 anos), de Hiko Yamanaka, para ilustrar como as máquinas podem servir como um espelho do que nos fazem humanos.
O ano é 2010 quando o jovem Yamada tenta cometer suicídio após receber a notícia de que seu namorado, Hikaru, faleceu. Yamada, apesar de nutrir muito amor pelo outro, reprimia seus sentimentos devido a uma rivalidade que a família de seu namorado e a sua possuíam. Tendo em vista isso, a sua tentativa de tirar a própria vida é principalmente engatilhada por depois de toda uma vida de repressão, a pessoa amada ser apagada de nosso plano de existência. 

Yamada entra num coma e consegue escapar da morte, acordando 250 anos depois, num futuro de arranha céus e desenvolvimento.. Sua sobrevivência só foi possível porque seus pais permitiram que o corpo de seu filho fosse preservado para que num momento futuro, em que a tecnologia e biologia tivessem avançado tanto, que quando seu corpo fosse despertado, os androides pareceriam tão reais quanto humanos.


Sendo assim, seus pais deixaram o legado de seu falecido amante: um androide construído baseado naquele ser humano, que pudesse conter características de seu comportamento e em sua aparência. O rapaz reconhece a intenção dos pais por terem aceitado seu relacionamento, mesmo que após sua morte, para que o filho não ficasse sozinho no planeta no futuro.

No entanto, acordar e encontrar um substituto robótico de alguém que um dia foi alma e carne, depois de despertar de um sono de 250 anos não poderia ser nada mais que no mínimo chocante, não é? E é nesse choque que Yamada recebe a situação. Então ele se comporta nada menos que mais fechado e mais agressivamente do que nunca foi em vida, mesmo o Hikaru-Androide o auxiliando em sua recuperação e tentando equilibrar suas emoções difusas. Esse tipo de personagem - o subistuto robôtico - ocasionalmente aparece em obras de ficção científica, mas para a filosofia, podemos associá-lo ao Homem do Pântano, um termo criado por Donald Davidson para designar a criatura originária de uma cópia de outra pessoa com consciência. Apesar de se parecerem, estes dois seres não são a mesma entidade. São criaturas separadas, com suas próprias resoluções, e que vivem normalmente suas vidas. Quando este conceito se aplica a ficção científica, é recorrente usarmos a “alma” e a “mente” para separar o que é humano do que não é. Ora, humano é um ser que reflete sobre suas ações e tem independência, mas um robô é uma ferramenta vazia e que é programada para agir como tal segundo as regras que seus criadores o implantaram. É nesse ponto em que podemos voltar a discussão para nossas ponderações iniciais. Está claro que um robô é um robô. Mas frente a esses seres futuristas, que atuam segundo a ética e moralidade humana, que são criados para suprir nossas necessidades até íntimas, no que eles diferem de seres humanos? É aí que temos o protagonista deliberando sua revolta, pois ele tem a plena consciência de que o Androide-Hikaru nunca vai ser o seu amante. É como se eles fossem “pessoas” completamente diferentes, ainda que tivessem o mesmo semblante. Em uma tentativa de manter seus pés no chão nesse dilema de humanidade, Yamada constantemente afirma que o robô é 30% falho em sua tentativa de representar seu falecido amante.




Porém, como é uma constante nesse tipo de história, em algum momento a pessoa acaba cedendo e aceitando aquela “cópia”. No entanto, no que se diferencia este mangá, fazendo-o assim seu mérito, é a exposição do pensamento: Se o robô fosse perfeito, ele não seria “humano”. Seguindo esse pressuposto, é possível concluir com as ações do personagem - de quando o robô desaparece para ser substituído por um mais avançado, o protagonista se recusa a ativar o substituto de seu substituto - de que o que faz os humanos serem o que são, eles precisam falhar, pois ele está recusando o indivíduo perfeito e escolhendo o falho. No final, essas falhas fazem parecer que o robô é uma pessoa diferente, não uma cópia, do seu amado. E tendo consciência disso, o protagonista procura e procura o robô original pra ficar junto com ele. Porque como ele é humano, aquilo é imperdoável. Mesmo um robô é insubstituível, e para a moral humana, aquele ser vazio ainda tem de arcar com as consequências de suas ações.

O Androide-Hikaru é encontrado trabalhando numa sucata, fazendo trabalho mecânico e não mais de suporte emocional, e mesmo sendo dispensado desse serviço, sua memória não foi apagada. Quando Yamada o encontra, acontece um acidente bastante grave: um prédio cai próximo a eles, impedindo a saída de ambos daquele lugar abandonado. O androide perde as pernas, enquanto o humano tenta tirá-lo de lá, carregando nas costas. Porém a queda daquele prédio provoca uma fumaça tóxica, e por isso o androide o protege com o que sobrou de seu corpo - neste momento é claro que a autora nos propõe a refletir sobre até que ponto suas ações são programadas. E aí se passam mais 250 anos. Yamada desperta, dessa vez sozinho.
Em um futuro de saudades das coisas que partiram, como o verde das florestas e colônias não-poluídas. Neste futuro, os robôs não são mais androides. Eles não possuem mais os aspectos que os fariam parecer com humanos, exceto por sua complexa tecnologia de inteligência mecânica. O que acontece é que se tornou problemático estes utensílios serem tão próximos da espécie humana, então readequaram os robôs para uma aparência mais funcional e simples, e que pudesse claramente delimitar qual é o ponto em que nos separamos deles, também desligando a funcionalidade de auxílio emocional.

- Nós somos feitos uniformemente sem juntas. Nossa forma é construída de linhas simples e curvadas.

A experiência com seres humanos tornou as máquinas tão inteligentes que elas começaram a gerar suas próprias conclusões. Dentre esses pensamentos, um dos momentos em que podemos destacar é quando o robô conta ao protagonista sobre as contradições da beleza. Os seres humanos são os únicos que podem dizer se algo é belo, ou não. Os robôs são estranhos, porque eles são uma cópia da carne, então eles são feios. Parece complexo de entender, mas é algo bastante simples: O corpo humano foi se desenvolvendo ao longo da evolução devido a suas necessidades de sobrevivência. É por isso que seu corpo se tornou o que é hoje. Mas porque um robô precisaria ser a imagem e semelhança de um ser humano? Robôs não precisam sobreviver. Não precisam de mãos para segurar coisas para se alimentar, ou pernas para fugir. Porque o robô não morre. Porque o robô não é impermanente. É consertável, ajustável, é uma casca.
Em outro momento, é comentado que os robôs não precisam de religiões e nem de crenças, pois é o seu maquinário e programação que os guiam, e não uma “vontade”.

Mas então, por que o humano se apega ao robô? Talvez buscando no sentido de efemeridade, para não perdê-lo, porque mesmo esse sendo eterno, o humano não é. Mesmo que o robô não possua sentido de vivência, as experiências são vividas pelos humanos, porque somos nós que construímos significado sobre aquilo que nos rodeia. Aí está incluso até mesmo o senso de responsabilidade por um objeto que te acompanhou durante uma crise, mesmo que este não possua em sua programação, sentido existencial algum.



Nessa história cheia de fatalismos e desencontros, de amor, perdão e perca, é que podemos ver nosso reflexo na prata do maquinário robótico.


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500-Nen no Itonami é um mangá de 2011 escrito por Hiko Yamanaka e publicado na On Blue.
Mangá escolhido por Koya, e lido por Lobo.

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