Bacurau - A língua que o rei não fala

Aviso de que eu não sou a pessoa própria pra falar isso, mas não encontrei nenhum paralelo do tipo na internet, então resolvi me arriscar e escrever sobre. Qualquer correção e conteúdo para adicionar ao texto que tiverem, podem comentar ali embaixo que eu faço os devidos ajustes.

Pois é. Vim falar de Bacurau. Esse filme que me pertuba desde a primeira vez que vi, ano passado... de lá pra cá foram 6 assistidas. Sem muito esforço consigo chegar nas 11--



Há muitas coisas sobre Bacurau que podem ser faladas. É um filme rico, cheio de camadas. Independentemente de você ter gostado ou não, há muito mais além de um filme confuso e dissonante entre suas duas partes. Parte do fascínio que permeia esse filme se deve a uma comum estranheza entre todos que assistem. É um filme esquisito, e sem querer adjetivar mais, é bom por isso. Para explicar porque essa curiosa estranheza e desconforto são mais de um sentido positivo, irei fazer um paralelo com uma peça musical.

Iremos deslocar só um pouquinho de estado.


É sabido que no Brasil por volta de 1970, ocorreram alguns movimentos musicais que fugiam do eixo Rio-São Paulo. Dentre eles a famosa galera de Pernambuco, e para esse texto, o “pessoal do Ceará”, que era um grupo de artistas do estado que despontaram pelo resto do Brasil ao lançarem suas inquietações para as radiolas.


Na década de 1980 fomos apresentados ao álbum Massafeira, de direção de Ednardo. Este álbum é resultado do evento homônimo, que reuniu vários artistas do Ceará numa coletânea diversa e ainda assim temática, dirigida por Ednardo.

Entre suas 24 faixas que percorrem o LP duplo, a que brilha nossos olhos para esse texto é a música de nome “O Rei”, de Tânia Cabral, interpretada por ela e Teti.


À primeira ouvida não há nada de se estranhar. É uma música bem construída, feita nos moldes medievais. Há até uma certa semelhança na construção musical se você é familiarizado com o Movimento Armorial do Ariano Suassuna, mas isso é em decorrência da influência das cantigas medievais galego-portuguesas.

Soa como trovas, e sua musicalização é acompanhada de instrumentos que conversam com as cantigas. Apesar disso, parece mais uma cantiga de escárnio disfarçada de cantiga de amor. Podemos notar algumas características em comum com a música e o tipo de construção.



Mas por que a construção é tão importante nesta canção?

Porque ela afeta totalmente o sentido. Há um diálogo entre os versos, a construção e a música. Acho que podemos dizer, que diferentemente do eu lírico masculino de uma cantiga de amor passando pela coita, as mulheres na música são a população, e a coita é o real e palatável temor, enquanto que o sujeito de afeição, é o de medo: o Rei.



A sonoridade parece romântica, mas a letra é uma ofensa ao grande patriarca. Podemos trocar a letra inteira e colocá-la nos antônimos, e ela estará passável como um grande elogio ao rei.

O que há de comum entre esta construção musical e o filme Bacurau é justamente a metalinguagem.


Bacurau é um filme de cinema de gênero, dirigido pela dupla Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, mais conhecidos por Aquarius e O Som ao Redor.

Repare na minha ênfase em “cinema de gênero”. Essa é uma grande questão para o filme.

Para melhor aproveitamento do longa, é melhor não desvincular o tipo de filme ao qual ele se enquadra. Assim como a canção “O Rei” é ricamente construída por usar-se da linguagem da cantiga de romance para criticar o monarca que regia a terra, é preciso ressaltar no quão faroeste e no gore Bacurau foi pautado.

Quando vemos filmes de bang-bang dos Estados Unidos - fazendo um recorte de, especialmente até os anos 1970 - a comum situação é a de os cowboys meterem bala em alguma população - geralmente indígena. É aquilo, não dá pra ignorar o conteúdo político de ambos: o pistoleiro chega lá e mete bala no que ele acha “estranho”.



O que acontece em Bacurau é meio que uma reapropriação da ordem de eventos e holofotes da situação, na primeira parte do filme. A população aparenta ser indefesa, e somos apresentados a todas as pessoas que compõem aquela comunidade e como eles sobrevivem numa situação distópica e futurista.

Realocando para os filmes de faroeste da década citada, a situação seria de os brancos, invasores da terra, exterminassem e possuíssem mais um terreno no seu grande catálogo de “áreas”.

Na segunda parte de Bacurau, é notável como a linguagem brinca com esse tipo de situação dos filmes de faroeste antigos. A estranheza pode ser anticlimática e parece às vezes uma grande panfletagem, mas dado o contexto tem muito pano pra manga.


Vemos finalmente os grandes vilões do filme, os heróis do faroeste. O que eles não esperavam, era que aquele pessoal iria dar a volta por cima.

Além desses vilões, podemos fazer outra conversa entre O Rei e Bacurau. O Rei mostra a população ciente da insandice do rei, enquanto que Bacurau mostra um povo ciente da sua história, e isso vai para algumas referências que o filme não te dá, se você já não as tiver. Funciona mais ou menos como a construção musical de O Rei, com a linguagem do cinema de gênero e o próprio contexto histórico.


Por exemplo, podemos afirmar que o enterro em vida de Michael é uma referência a morte de Jararaca, poderoso cangaceiro que foi enterrado vivo, e que ironicamente se tornou santinho aqui na terrinha.

Eu falo “ironicamente”, porque é sabido que toda essa perseguição aos cangaceiros deu a própria polícia uma visão bem romântica sobre seu próprio poder. E a população? Se quem virou santo foi o bandido, isso diz alguma coisa sobre a polícia.

Assim como as marcas de sangue deixada na parede do museu de Bacurau, aqui em Mossoró a polícia deixou as marcas das balas de tiro trocados pelos cangaceiros de forma intocada na igreja São Vincente.


A referência mais óbvia do filme é a cabeça dos gringos sendo decepadas. São as cabeças dos cangaceiros. Mais fácil de concluir seria que é uma vingança, mas podemos afirmar que é algo como a decolonialidade, na verdade. É tirar, nesse caso “da polícia contra os cangaceiros” o mérito de tê-los matado, para “a população lembra de tudo que a polícia fez” ou para especificamente Bacurau: tirar o gringo que nos mata, a colonização.

Essas referências ficam meio submersas talvez porque ainda que nosso país seja riquíssimo em diversidade e cultura, nossos estados e regiões não se conversam. Apesar desta década conectada e internética, às vezes nosso país nos soa muito estrangeiro.

O que é interessante de se pensar, pois Bacurau é um filme de gênero, que usa e abusa de sua linguagem e é permeado de referências de grandes e famosos filmes, mas ao mesmo tempo que é uma grande homenagem ao Faroeste, é uma espécie de descolonização dele, não apenas uma localização do gênero em nosso país, mas como uma aplicação.

E pra fechar, talvez como O Rei reagiria se chegasse aos seus ouvidos a cantiga contra ele… Michael no final do filme diz que a reação do povo é muito violenta. “So much violence…”.


Como sempre, os reis e os tiranos são incapazes de olhar para as próprias mãos.

Feliz 2020!
Seguinte
« Prev Post
Anteriores
Seguinte »

1 comentários:

Write comentários
nakeagaertner
AUTHOR
4 de março de 2022 às 12:46 delete Este comentário foi removido por um administrador do blog.
avatar

✧ Como eu compro coisas pela internet