✧ Mono no Aware: A Alegria na Melancolia no Quadrinho Japonês parte 2

Parte Anterior

Mangás
Como o mono no aware e demais pensamentos semelhantes já eram aplicados à poesia e literatura japonesa, é natural afirmar que tão cedo eles estariam presentes até em quadrinhos comerciais. A ideia é fortemente visível em slices of life - pedaços da vida, ou retratos da vida, que são histórias que falam sobre o cotidiano de pessoas comuns. E além das diversas comédias marcadas por slice of life e personagens moe - uma vertente comercial bastante difundida no Japão desde os anos de 1990, que se expandiu bastante desde o começo do milênio, que se trata de personagens que causam necessidade de proteção e que são atrantes principalmente para o público masculino; há aqueles que trazem a reflexão sobre a existência do ser humano e trabalham diretamente com o mono no aware.

MONO NO AWARE NOS MANGÁS

Enquanto que a poesia japonesa trata o mono no aware pela beleza do uso dos kanjis e assim como toda sua construção caligráfica, rimas e seu conteúdo de análise claramente pessoal e expressiva sobre o mundo ao redor e o interior humano, o quadrinho japonês o usa com o poder de suas imagens e narração, fazendo com que toda a trama trabalhe com o conceito e guarde para o leitor sua memória tanto visual quanto narrativa, as experiências dos personagens, e todo o contexto que os envolvem e os lugares por onde passaram. É muito comum que as histórias que fazem uso de tal elemento estético serem protagonizadas por viajantes e ambientadas em lugares surreais. No entanto, a presença da efemeridade traz consigo a sensação de identificação com o leitor.

A quieta contemplação que existe nas poesias japonesas, também é um elemento utilizado nos mangás e cinema, uma característica bastante notada nos filmes de Yasujiro Ozu. Tal elemento está principalmente presente entre cenas de conversação, em que existe um corte no diálogo dos personagens para que algum cenário ou objeto seja mostrado, como os postes nas ruas ou uma estátua em uma casa. Tais cortes são derivados das poesias de waka que fazem uso de makurakotoba, uma espécie de epíteto, e que aplicado à linguagem visual, transforma a conversação em uma pausa melancólica. A ênfase na contemplação da atmosfera mostra as influências budistas na mídia quadrinho. A presença do sobrenatural nos mangás Mushishi e Natsume Yuujinchou é justificada como sendo uma mostra de como a natureza e o humano se completam. Ambos dão acesso à ideia de espiritualidade, de um patamar de seres além dos físicos ou visíveis. O folclore unido à melancolia, assim como as reflexões sobre a vida humana tornam as obras de Yuki Urushibara e Yuki Midorikawa muito felizes no quesito filosófico. Quando Ginko, o protagonista de Mushishi se encontra em um caso em que não é possível salvar uma vida e ele confessa aos seus clientes de sua incapacidade, geralmente a conversa é cortada para que alguma parte do cenário apareça, como as nuvens no céu ou um rato morto no chão. Tal corte trata-se de um makurakotoba cinematográfico, e transmite a sensação de que a história terá um final infeliz ou que a solução mais próxima do problema será prejudicial para alguém.

Em mangás e animes protagonizados por viajantes, é possível notar que as ambivalências dos personagens sobre o mundo que exploram geralmente são nutridas de reflexões filosóficas que nascem a partir do conceito do mono no aware. Tanto Mushishi quanto Kino no Tabi (livro de Keiichi Shigusawa, adaptado para anime) tratam de casos episódicos em que os personagens andam por diferentes cidades, interagindo com diferentes pessoas e descobrindo cada vez mais sobre a não dualidade do mundo, a alegria e a tristeza de ser humano. A complexidade dos questionamentos e diálogos são de forte influência budista, pois tratam do não apego à matéria e ideais, a constante sensação de mudança do mundo e de sua temporalidade.
Figura 1: A paz está presente no mundo pós-apocalíptico em Yokohama Kaidashi Kikou. Fonte: ASHINANO, 1994, v.4 p. 130.

A efemeridade do homem e sua passagem na terra são temas fortemente trabalhados em Yokohama Kaidashi Kikou e em Memórias de Emanon, assim como o Coração de Thomas, e Golden Days. Memórias de Emanon é um mangá de Shinji Kajio e Tsuruta Kenji sobre uma mulher sem nome - No Name, Emanon, que misteriosamente consegue lembrar-se de tudo que ocorreu no mundo, desde o nascimento do homem, até os dias atuais, como um metuselá. Os ciclos de reencarnação e sua constante persistência a seguir com a vida apesar de ver todos os amados morrerem, fazem parte da bruta beleza que consiste o wabi sabi e mono no aware. Os recortes de existência humana em sua ampla vida a tornam uma espécie de organismo de memórias inacessíveis aos olhos alheios. O autor também costuma criar uma forte relação entre Emanon e a natureza, como que ela fosse a personificação da própria terra em uma mulher, fazendo um paralelo entre sua capacidade de reprodução que gera sempre a si mesma, que é o poder que difere ela de outros humanos – sempre continuar com a vida após a própria morte.  


Seguinte
« Prev Post
Anteriores
Seguinte »

✧ Como eu compro coisas pela internet