Mangás
Como o mono no
aware e demais pensamentos semelhantes já eram aplicados à poesia e
literatura japonesa, é natural afirmar que tão cedo eles estariam presentes até
em quadrinhos comerciais. A ideia é fortemente visível em slices of life - pedaços da vida, ou retratos da vida, que são
histórias que falam sobre o cotidiano de pessoas comuns. E além das diversas
comédias marcadas por slice of life e
personagens moe - uma vertente
comercial bastante difundida no Japão desde os anos de 1990, que se expandiu
bastante desde o começo do milênio, que se trata de personagens que causam
necessidade de proteção e que são atrantes principalmente para o público
masculino; há aqueles que trazem a reflexão sobre a existência do ser humano e
trabalham diretamente com o mono no aware.
MONO
NO AWARE NOS MANGÁS
Enquanto que a poesia japonesa trata o mono no aware pela beleza do uso dos
kanjis e assim como toda sua construção caligráfica, rimas e seu conteúdo de
análise claramente pessoal e expressiva sobre o mundo ao redor e o interior
humano, o quadrinho japonês o usa com o poder de suas imagens e narração,
fazendo com que toda a trama trabalhe com o conceito e guarde para o leitor sua
memória tanto visual quanto narrativa, as experiências dos personagens, e todo
o contexto que os envolvem e os lugares por onde passaram. É muito comum que as
histórias que fazem uso de tal elemento estético serem protagonizadas por
viajantes e ambientadas em lugares surreais. No entanto, a presença da
efemeridade traz consigo a sensação de identificação com o leitor.
A quieta contemplação que existe nas poesias
japonesas, também é um elemento utilizado nos mangás e cinema, uma
característica bastante notada nos filmes de Yasujiro Ozu. Tal elemento está
principalmente presente entre cenas de conversação, em que existe um corte no
diálogo dos personagens para que algum cenário ou objeto seja mostrado, como os
postes nas ruas ou uma estátua em uma casa. Tais cortes são derivados das
poesias de waka que fazem uso de makurakotoba, uma espécie de epíteto, e
que aplicado à linguagem visual, transforma a conversação em uma pausa
melancólica. A ênfase na contemplação da atmosfera mostra as
influências budistas na mídia quadrinho. A presença do sobrenatural nos mangás
Mushishi e Natsume Yuujinchou é justificada como sendo uma mostra de como a
natureza e o humano se completam. Ambos dão acesso à ideia de espiritualidade,
de um patamar de seres além dos físicos ou visíveis. O folclore unido à
melancolia, assim como as reflexões sobre a vida humana tornam as obras de Yuki
Urushibara e Yuki Midorikawa muito felizes no quesito filosófico. Quando Ginko,
o protagonista de Mushishi se encontra em um caso em que não é possível salvar
uma vida e ele confessa aos seus clientes de sua incapacidade, geralmente a
conversa é cortada para que alguma parte do cenário apareça, como as nuvens no
céu ou um rato morto no chão. Tal corte trata-se de um makurakotoba cinematográfico, e transmite a sensação de que a
história terá um final infeliz ou que a solução mais próxima do problema será
prejudicial para alguém.
Em mangás e animes protagonizados por viajantes, é
possível notar que as ambivalências dos personagens sobre o mundo que exploram
geralmente são nutridas de reflexões filosóficas que nascem a partir do
conceito do mono no aware. Tanto
Mushishi quanto Kino no Tabi (livro de Keiichi Shigusawa, adaptado para anime)
tratam de casos episódicos em que os personagens andam por diferentes cidades,
interagindo com diferentes pessoas e descobrindo cada vez mais sobre a não
dualidade do mundo, a alegria e a tristeza de ser humano. A complexidade dos
questionamentos e diálogos são de forte influência budista, pois tratam do não
apego à matéria e ideais, a constante sensação de mudança do mundo e de sua
temporalidade.
Figura 1: A
paz está presente no mundo pós-apocalíptico em Yokohama Kaidashi Kikou. Fonte: ASHINANO,
1994, v.4 p. 130.
A efemeridade do homem e sua passagem na terra são
temas fortemente trabalhados em Yokohama Kaidashi Kikou e em Memórias de
Emanon, assim como o Coração de Thomas, e Golden Days. Memórias de Emanon é um
mangá de Shinji Kajio e Tsuruta Kenji sobre uma mulher sem nome - No Name, Emanon, que misteriosamente
consegue lembrar-se de tudo que ocorreu no mundo, desde o nascimento do homem,
até os dias atuais, como um metuselá.
Os ciclos de reencarnação e sua constante persistência a seguir com a vida
apesar de ver todos os amados morrerem, fazem parte da bruta beleza que
consiste o wabi sabi e mono no aware. Os recortes de existência
humana em sua ampla vida a tornam uma espécie de organismo de memórias
inacessíveis aos olhos alheios. O autor também costuma criar uma forte relação
entre Emanon e a natureza, como que ela fosse a personificação da própria terra
em uma mulher, fazendo um paralelo entre sua capacidade de reprodução que gera
sempre a si mesma, que é o poder que difere ela de outros humanos – sempre
continuar com a vida após a própria morte.
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