A PASSAGEM HUMANA NOS MANGÁS
Yokohama Kaidashi Kikou é um mangá de Hitoshi
Ashinano, publicado ao longo de 12 anos na revista Afternoon, que recebeu o
prêmio Seiun de Melhor Mangá de 2007. Antes do grande colapso do homem, os
humanos conseguiram finalmente atingir a quase perfeição robótica. No entanto,
a humanidade está em seu fim, e apesar de Yokohama tratar de um mundo
pós-apocalíptico, o quadrinho opta por ao invés de mostrar duras batalhas de
sobrevivência, mostrar que o tempo do homem simplesmente acabou, que não há
como escapar. É o crepúsculo da humanidade, e Alpha, a protagonista, acompanha
a vida dos últimos humanos na terra, cuidando do café que seu dono a confiou.
Ao longo dos 14 volumes, Alpha vivencia os últimos anos do homem na terra. O
mundo está decaindo, crianças não nascem mais e a população humana é consistida
principalmente de idosos. Alguma catástrofe ocorreu, mas que nunca é
mencionada, e para suprir a falta de explicações, o quadrinho deixa certas
pistas de que um desastre natural ou nuclear causou o declínio da humanidade,
mas originou diversas formas diferentes de vida em troca. A obra é preenchida
de uma suave melancolia devido ao fim da vida humana, mas que é balanceada pela
existência do imortal, o robô, que contém as lembranças de que um dia os homens
pisaram na terra - ubi sunt. Há pouco
dos homens e de suas obras, mas a sua existência foi verdadeira e assim ela
será eterna – assim como as flores de cerejeira que caem do poema do monge
Jiyen. Alpha agracia os leitores com sua alegria e inocência, viajando pelos
restos de Yokohama e fotografando, apenas para ela, os registros do homem,
quase que como um poema do mono no aware
- em que o receptáculo de memórias observa a noite da humanidade, bebendo um
café tão amargo quanto um último suspiro, mas tão caloroso quanto seu cheiro. A
seguir, um trecho do artigo “A Healing, Gentle Apocalypse: Yokohama Kaidashi
Kikou”, por Marc Hairston.
Outro
exemplo de mono no aware aparece no
capítulo 124, “Batida do coração”, onde Alpha encontra um motor de um avião
antigo na dispensa da loja de seu dono e tenta consertá-lo [...]. Ela observa:
“Com toda sua força o motor manifesta sua alegria de correr depois de tantas
décadas. Ele gira como se estivesse chorando enquanto corre, e vai correndo
como se dissesse 'eu não vou deixar uma gota do que poderia ser a última gota
de combustível para sempre” (13:06). E então ele morre, permitindo que o
silêncio do campo retorne. (HAIRSTON, 2008, p. 256-257, tradução nossa)[1]
O ma da casa de chá japonesa traz a sensação de
espaço e tempo, o intervalo entre as coisas. Há um paralelo entre o trabalho
com intervalos lentos entre ações em Yokohama Kaidashi Kikou – a pista alagada,
coberta pelo mar até a altura dos postes, poderia impedi-los de brilhar, mas
estes persistem como que um organismo vivo, e conforme descrito no mangá, eles
parecem funcionar apenas com o propósito de brilhar. O mono no aware vê a vida em objetos inanimados, assim como os postes
da história. A memória de que o homem esteve na terra foram suas construções, e
a memória do robô Alpha de que seres racionais "vivos" estiveram um
dia no planeta é semelhante aos postes que persistem a iluminar. Assim como o tao do taoísmo é eterno e mutável,
eternos são os ciclos de memórias. E é nesse ciclo de memórias que alguns
quadrinhos japoneses trabalham.
Finalmente, Aria, menos denso que Yokohama, mas capaz
de passar a sensação de simplicidade e de alegria, é um quadrinho de Kozue
Amano que trata de felizes dias de uma garota em Aqua, que seria Marte
pós-colonização humana. Akari diverte-se explorando todos os elementos da
cidade que vive, tanto conhecidos quanto desconhecidos, em sua gôndola, com o
desejo de realizar seu sonho de ser uma undine
- uma gondoleira de renome. A fuga da tecnologia da Casa dos Homens (Terra), o
escapismo para um mundo mais voltado ao contato humano, ao natural, é a volta
do ser humano para sua própria essência. Aria trata o mundo com tanta alegria e
generosidade que chega ao ponto de tornar-se uma história suavemente
melancólica, que ressalta a efemeridade da inocência e juventude. No entanto,
apesar de os adultos e idosos no quadrinho não terem mais aquela visão tão
energética do mundo, é mostrado na obra que apesar de longos anos de vida, as
pessoas ainda encontrarão meios de serem felizes, com as coisas mais simples
possíveis. O mundo não é dual - não é preto e branco. Não é porque algo é
grande que signifique algo imenso. Existem tons de cinza que envolvem a
existência, e tal possibilidade de variações é a própria vida humana, é o que
faz cada pessoa ser única, conforme Aria mostra.
[1] Another example of mono no aware appears in chapter 124,
“Heartbeat,” where Alpha finds an old model-airplane engine in the shop owner’s
storage shed and sets about to fix it […]. She observes, “With all its might
the engine expresses its joy of running after so many decades. It spins like
it’s crying while hurrying, rushing, as if it’s saying ‘I will not leave a drop
of what might be the last the last bit of fuel ever’” (13:60). And then it
dies, allowing the silence of the countryside to return.
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