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MONO NO AWARE – A ALEGRIA NA MELANCOLIA NO
QUADRINHO JAPONÊS
Débora Valéria
Todo dia é uma jornada,
e a jornada em si é o lar.
(Matsuo Basho)
Mono no aware
O
trágico presente na ficção traz a semelhança humana em uma obra. A empatia e o espírito zen são naturais da literatura
oriental, e a serena sensação de que as coisas são efêmeras e a sensibilização
sobre o que há no exterior faz parte do imaginário melancólico japonês. Certos
quadrinhos de origem nipônica fazem uso da satisfação no mínimo, da leveza do
cair das flores de cerejeira, da mortalidade da passagem. O
mono no aware, que pode ser traduzido como noção, pathos, sensibilidade, “ah” e “oh” das
coisas é um elemento
estético originado no período Edo e de fortes influências da Era Heian e usado
na literatura e poesia japonesa até hoje. No entanto, também é usado em outras
mídias, como os mangás, animes e filmes.
Até os dias modernos no Japão, o mono no aware é considerado um dos conceitos estéticos centrais.
Motoori Norinaga (1730-1801) buscou elevar o aware ao mono no aware,
afirmando, enquanto recluso do mundo exterior, que as pessoas (os japoneses)
que experienciavam a totalidade da vida e suas coisas, sentiam-se assim movidas
e por elas tocadas. A seguir, a definição de mono no aware por Jacques Rouband (1970, apud IWANG; FRÉDERIC, Louis, 2008, p. 812):
“Coisas próprias para comover”. Expressão utilizada
para descrever um sentimento que provoca uma grande emoção e que frequentemente
é utilizada nas artes e literatura desde o período de Heian. Esse sentimento
fugidio e difuso, que pode ser partilhado por várias pessoas ao mesmo tempo,
envolve uma certa parte de melancolia, de dor não-expressa, em parte devido ao
sentimento budista de impermanência das coisas (mujô). (ROUBAND, 1970, apud
IWANG; FRÉDERIC, 2008, p. 812)
O budismo e o xintoísmo foram de forte influência para
o desenvolvimento da estética japonesa. Para compreender a relação com a
natureza dos japoneses, é preciso recordar que durante bastante tempo o Japão
manteve-se fechado à sua própria cultura, recusando tudo do exterior, apenas
centrado em si mesmo. Tal período ajudou a nutrir boa parte dos elementos
estéticos utilizados até hoje na cultura nipônica. Desde a era Heian, o Japão
tem apresentado centenas de novos ideais de forte relação com a natureza, e dentre
eles, há três que se dialogam intensamente: o mono no aware, o wabi sabi
e o ma. Tais elementos estéticos se
fazem presentes na cultura e arte, onde a culinária, a casa de chá e poesia e
arquitetura se ligam. Eles tratam da efemeridade, da plenitude na imperfeição e
da não dualidade do mundo, que são características da própria essência budista,
sendo os três formas diferentes de ver a beleza e o natural.
Segundo Andrijauskas: “o sentimento é uma centelha de
luz intensa que pode brilhar fortemente, mas apenas por um instante, resultando
em uma poderosa experiência emocional, que só pode ser sentida na brevidade do
mesmo." (ANDRIJAUSKAS, 2003, p. 201, tradução nossa) [1].
Um observador deve estar atento durante a primavera para notar toda a beleza
das flores. No Japão, a protagonista de seu grande universo de poemas e
romances costuma ser a cerejeira. Tudo está ligado ao espetáculo de sua vida, e
quem assiste a experiência deve notar que seu período de flor é de apenas
alguns dias, pois após seu florescer, as flores de cerejeira (sakura) caem e morrem. A capacidade de
ver a vida nas pequenas formas, o que há de intrigante em cada existência e
objetos são associadas ao mono no aware.
A experiência e suas transformações, a emoção sentida em apenas em um momento
específico e as memórias de uma existência são passadas nos poemas do monge
Jiyen: "Não nos deixe culpar o vento, indiscriminadamente / que dispersa as flores tão impiedosamente / Acho que
é seu próprio desejo de falecer antes de sua hora chegar" (JIYEN, 1155, apud
SUZUKI, 1973, p. 390, tradução nossa)[2].
Em entrevista ao Jornal Simply Haiku: A Quartely Journal of Japanese Short Form Poetry,
Michael Marra[3] afirma:
A
habilidade sentir-se “movido” (aware)
é resultado de um árduo estudo, especialmente poesia e clássicos que ajudam os
leitores perceberem o significado do que é afetado. Aparentemente, a poesia de
Hollywood e os clássicos não são muito populares. Para Norinaga, a ética é na
verdade o resultado da estética ao qual é resultado da poética: alguém sabe
como se comportar porque ele aprendeu como se sentir. Mas alguém não sabe como
se sentir até que ele saiba ler poesia. (MARRA, 2007, tradução nossa)[4]
Similar à expressão saudade em termos de tradução nem
sempre capaz de passar claramente o que deseja, o mono no aware ou pathos
das coisas pode ser caracterizado em português como a saudade do que não se foi
ainda. Tal pathos é um artifício
muito usado em obras japonesas, é a noção de mortalidade e a melancolia que
existe na paixão pela curta passagem humana na terra. A repetição de ciclos de transição de emoções
tristes se torna um sentimento de solidão contente, de humanidade. A
junção do trágico grego com a filosofia japonesa ajuda a compreender o mono no aware. A sensível sensação de transcendência, o amor
ao fútil, ao não notável. Como a existência humana é efêmera, a própria ficção
brinca com ubi sunt. "Onde estão
aqueles que se foram antes de nós?". Tal dizer latino evoca imediatamente
a sensação de transição, e se comunica vastamente com o pathos. Esses conceitos ajudam a compreender seus respectivos usos
na ficção. A seguir, um trecho a cerca de mono
no aware, fragmento da tese de Mitsuyo Toyota:
Quando
alguém vê os aspectos efêmeros da natureza, como por exemplo, mudanças de
clima, a impermanência da vida e morte do ser, suas profundas emoções (aware) surgem. Esse tipo de orientação
emocional a cerca da natureza é tratada como uma resposta estética na tradição
japonesa.[...] Quando percebemos a beleza natural, não trata-se apenas da
natureza, mas também sobre o que há dentro de nós. A beleza natural é uma parte
de nossa existência impermanente e deve ser totalmente reforçada. (TOYOTA,
2002, p.70, tradução nossa)[5]
Quanto ao Wabi
Sabi e o Ma, que cresceram
juntamente com o mono no aware, é
possível afirmar que suas aplicações são mais presentes na arquitetura, no
entanto a filosofia tem característica principal nos ambientes em que tais
conceitos são utilizados. O Wabi Sabi
é de uma desordem, assimetria e beleza imperfeita, sendo assim um elemento
estético de fundamentos budistas, mas que visualmente é muito próximo ao Kitsch, apesar de opostos
conceitualmente, já que o Wabi Sabi
(quietude e simplicidade) prega a modéstia, a beleza áspera e irregular, e
também as três marcas da existência no budismo, que são a impermanência (anicca), o não-eu (anatta), e o sofrimento (dukkha).
O Ma “uma fenda na porta em que a luz
da lua passa por” ou “intervalo, espaço, discórdia, oportunidade favorável” é o
espaço das coisas. É um vazio, geralmente simétrico com o intuito de voltar-se
ao tempo, um intervalo reflexivo ou apenas de respiração, utilizado
principalmente na casa de chá para criar um ambiente capaz de passar a sensação
de calma e suavidade.
[1] the feeling is a flicker of intense
light that may
shine brightly, but
only for an
instant, resulting in a “powerful emotional experience” that can only be
felt in the brevity of it.
[2] Let us not blame the wind,
indiscriminately / That scatters the flowers so ruthlessly / I think it is
their own desire to pass away before their time has come.
[3]
Professor de literatura japonesa, estética, hermenêutica, na Universidade de
Califórnia, Los Angeles.
[4] The ability to be "moved"
(aware) is the result of arduous study, especially poetry and the classics that
help readers realize the meaning of affects. Apparently, in Hollywood poetry
and the classics are not very popular. For Norinaga, ethics is actually the result
of aesthetics which is the result of poetics: one knows how to behave because he/she
has learned how to feel. But one does not know how to feel unless he/she knows
how to read poetry.
[5] When one sees ephemeral aspects of
nature, for example, seasonal changes, impermanence of life and death of being,
deep emotions (aware) arise. This sort of emotional orientation to nature is
regarded as an aesthetic response in the Japanese tradition […] When we
perceived natural beauty, it is not only in nature but also within us. Natural
beauty is a part of our impermanent existence and should be enhanced fully.
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