✧ A Organicidade dos Mecanismos (caso 1: Jogos)


Ao se comparar um quadrinho produzido hoje aos que eram publicados 20 anos atrás, percebemos diferenças que vão além de sua qualidade impressão. Com o surgimento de novas plataformas de criação, tornou-se possível dar luz a histórias que seriam acessíveis a todo o mundo a um preço ínfimo. Além das características de produção, os quadrinhos online são compostos de possibilidades que não se limitam às barreiras e ao formato necessário para ser veiculado no papel, podendo assim dar luz a novas formas de manifestação e maior interatividade com os leitores.

Interatividade parece ser a palavra do século. Ou da década, levando em conta a velocidade com que estamos obtendo novas informações que adquirimos todos os dias. Tudo está muito rápido e, por isso, nossas mídias devem acompanhar o momento atual. A busca pela interatividade tem sido primordial nos últimos anos no que se diz respeito a criação de novas histórias que desejem alavancar formatos inventivos e conquistar um público interessado na transformação dos produtos consumidos.

Instagram @cuploveroficial

Levando em conta o nosso novo campo - a internet e a sua mobilidade - a hibridização das mídias tem se tornado um status almejado. É possível perceber na publicidade, a partir do storytelling de uma marca, dos anúncios veiculados de formas nunca antes vistas em plataformas como o instagram ou snapchat, que notamos algumas das novas possibilidades de uso desses sites e de outros formatos. Ora isso ocorre em comerciais de lojas de roupas, com pequenas animações inseridas nos stories do instagram e que fazem uso das qualidades da touchscreen de telas, ou em campanhas com a recente promovida pela 5star,  onde um usuário fala uma frase e o outro continua, gerando uma história toda no final (como aquelas que víamos no orkut).

Porém é no entretenimento que tal hibridização e interatividade se faz mais interessante. Com maior dedicação na hora de montar o storytelling, nós, consumidores, podemos acabar nos envolvendo mais com as histórias, afinal, elas parecem direcionadas especificamente para nós.


Harvest Moon

É por isso que hoje trago alguns exemplos em que o mecanismo importa sim quando estamos consumindo algo. Especificamente, estarei falando de joguinhos. E mais especificamente ainda, aqueles que nos dão a sensação de conforto, os retrôs ou bidimensionais, já acostumados a ter um formato próprio desde sempre, e por isso esperamos que eles não mudem. Estamos seguros de que sua construção não vá nos trair, afinal, é só um joguinho e eu tenho pleno controle sobre ele, não é?

Acontece que, atualmente, os jogos estão implantando o próprio storytelling na sua jogabilidade, estimulando uma certa organicidade na experiência além de jogador-jogo. Certo que ainda temos algum domínio sobre os jogos (afinal pensamos que temos domínio sobre as máquinas), mas ainda assim nem sempre é fácil, por exemplo, deletar um save de Undertale se o usuário tentar apenas diretamente no próprio jogo, assim como a intuitividade veio a se tornar mais parte da experiência e menos de ações repetidas ao obedecermos um walkthrough pela metade.

Mas vamos seguindo com alguns exemplos que trago aqui, descrevendo um pouco de minha experiência com eles e os momentos em que a interatividade acontece, de jogos mais antigos a jogos um pouco mais modernos. Lembrando que eu não sou gamer, poucas vezes jogo alguma coisa, então claro que devem haver centenas de outros exemplos do que estou querendo falar, mas se quiserem contribuir com exemplos legais e suas experiências fiquem mais do que a vontade!

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Earthbound 1994

Esse joguinho de super nintendo marcou muita gente no fim dos anos de 1990 e no começo dos anos 2000. A própria história em si faria sucesso nos dias de hoje devido a todo esse revival do clima que existia nos anos de 1980 e 1990, pois a nostalgia vem sendo um ótimo material de venda (ou a nostalgia que as pessoas possuem de coisas que nem viveram). Acontece que a imersão naquela época era um pouco mais difícil, e talvez a resposta a uma pequena interatividade já fosse grande demais. Pois bem, nessa história temos crianças se envolvendo em encrencas da pesada depois que artefatos de outro planeta surgem. Os monstros e pessoas psicodélicos dão todo aquele clima assombroso do joguinho. E aí quando chegamos na batalha final….



Talvez o mais simples que possa parecer, mas apenas nos chamar pelo nome já é o suficiente. Talvez por isso eu tenha em minha memória até hoje o medo por Earthbound, joguinho esse que fez parte da minha infância e mexeu um tanto com minha cabeça.

Resumindo, a experiência que existe de quebra da quarta parede com Earthbound se dá simplesmente a partir do momento em que você dá o seu nome verdadeiro no jogo e você, jogador, é chamado para ajudar os amiguinhos na luta contra o Giygas, o monstrão maldito que me traumatizou. Ele não é como os outros. Ele nos causa a sensação de que perdemos nossas defesas. E aí, quando achamos que tudo já era, não vai dar pra vencer, Paula nos chama dentro do jogo. “Nós temos que ajudar a Paula e seus amigos, pessoal!” pensou a autora desse post, chorando, traumatizada pelo Giygas.


Yume Nikki 2004

Yume Nikki? Mas como assim Yume Nikki se ele não possui nem falas?

Talvez a característica principal de interatividade em Yume Nikki seja exatamente por isso. Nada nos é explicado, nos sentimos imersos por não compreendermos, tudo parece além de um jogo já que não nos é dado resposta de nada que está acontecendo, por isso podemos concluir as coisas conforme desejamos.

Resumindo o jogo para o leitor que por acaso não o conheça, o que há de ser explicado é que temos uma garota como personagem jogável, ela dorme, sonha e de repente aparecem portas e, dentro dessas portas, existem pequenos mundos cheios de surpresas. Nesses mundos podemos encontrar cerca de 24 itens que devem ser coletados para um objetivo final.



Como um jogo explorativo, yume nikki não é intuitivo mas possui uma lógica simples se você resolver seguir as regras. Acontece que nada impede de você tentar interpretar aquele jogo de outras formas e procurar um significado dentro dos sonhos da Madotsuki.

Mas além de todo o jogo e seu final que rende toneladas de discussões até hoje em fóruns da internet, sua própria criação permanece um mistério até hoje. Tudo que sabemos sobre sua autoria é o nome Kikiyama, alguém ou um grupo de pessoas que nunca deu uma palavra, o que acaba gerando todo um clima de misticismo ao redor do jogo: nada é certo e nós que concluímos as coisas de acordo com nossas próprias interpretações. Ou não concluímos.

Sendo assim, mesmo com um final, o jogo parece não possuir um final ainda, pois seguimos o mantendo vivo.


Irisu Syndrome 2010

Irisu Syndrome é um pequeno jogo de puzzle que pode ser concluído em pouco tempo. Como um jogo de empilhar peças, é estranho imaginar que houvesse uma história por trás. No entanto, trata-se de um jogo de terror. É aqui que as coisas começam a, literalmente, saltar a tela.


O que posso falar é que em um certo momento, a bruxa começa a aparecer de um canto da tela do computador, do próprio desktop do jogador. O jogo é em janela e por isso ela pode caminhar até o lugar que a tela está posicionada e… BAM! Esse me rende um sustinho, mas na época achei muito interessante esse mecanismo. Além de que, alguns arquivos aparecem dentro da pasta do jogo.

Aliás, o campo dos jogos de terror e quadrinhos tem muito a ganhar com a interatividade. Não só por jumpscares mais eficazes, mas por tornar as sensações mais reais (a sensação de que perdemos o domínio sobre as máquinas).

Undertale 2015

Um ser humano cai no abismo e lá encontra diversos monstros. Uma mãe cabra nos dá dicas e nos abriga em sua casa, ao mesmo tempo em que tenta limitar nossa liberdade para não explorarmos o mundo afora. Mas nós queremos explorar, e ela não nos deixa passar pela porta que nos leva pra fora de jeito algum. Matamos e prosseguimos ou tentamos resistir um pouco mais?

Undertale explodiu a internet desde seu lançamento até hoje, e não é pra menos. Talvez algumas pessoas tenham desistido dele devido à proporção que o seu fandom tomou ou a não o considerarem lá essas coisas ou mesmo a sua inventividade, mas o jogo se tornou um fenômeno popular com uma construção muito digna e ousando provocar alguns sentimentos devido aos seus personagens e nossas escolhas.


Em sua narratividade quanto a trama geral, a história brinca com a dualidade do ser humano e nossas capacidades de tomar decisões com base em nossas experiências em jogos do tipo. Geralmente quando nos deparamos com RPGs e qualquer outra coisa que envolva monstros, somos obrigados a matar, pela própria mecânica do jogo, para que a história siga em frente. Porém em Undertale isso não é mandatório e deve ter agradado bastante aquele pessoal que não queria matar os monstros quando criança (será que estou falando de mim?).

Pois bem, além de brincar com nossos julgamentos, o jogo possui como principal mecanismo a sua memória, o que significa que suas ações passadas em saves anteriores podem influenciar o rumo do jogo. Por exemplo, resolvi matar a mãe cabra no começo do jogo por achar que era o único jeito. Me arrependo, volto o jogo e recomeço. A flor aparece e me diz… que sabe o que eu fiz. Que eu me arrependi. Esse é um exemplo que deve ter ocorrido com várias pessoas, e talvez um dos mais interessantes do jogo. O fator memória pode estimular diversas experimentações narrativas, tornando a história não exatamente linear e mais envolvente.


Doki Doki Literature Club 2017  ! SPOILERS !

Essa é minha experiência mais recente, peguei apenas o final especial e devo dizer que foi a inspiração para criação desse post.

Esse jogo… ou como preferir chamar, é uma visual novel, aquele tipo de história que mais parecem livros e que fazemos algumas escolhas, resumindo bruscamente. Inclusive há uma discussão se o termo deve ser “jogar” ou “ler” nesse caso, mas vamos deixar esse papo de lado e vamos ao que interessa.

Pra quem não é familiarizado com visual novels ou com os estereótipos de tipos de personagens de animes, aqui vai uma curta explicação:

Taiga é um exemplo clássico de tsundere, rs

Em animes, mangás e etc é comum encontrar personagens que se enquadram com um comportamento que se encaixe em algum tipo de personagem. É o caso das tsunderes, kuuderes, yanderes e até mesmo coisas simples como amigo de infância ou senpai (veterano). Essas personagens costumam se encaixar com um devido comportamento relacionado a essa figura, como por exemplo a okaasan (mãe) ser uma mulher sensual que cozinha bem e sabe lidar com dedicação com os diversos prazeres sexuais. Ou então as tsunderes, o exemplo clássico, das pessoas que são doces por dentro e aparentam ser amargos por fora (geralmente por não saberem se expressar bem). ✧



Então é a partir dessas personagens típicas que surge essa VN. Não estou dizendo que ela é a única a fazer isso, afinal é até comum encontrar dentro dos próprios animes e mangás, personagens que se encaixam como tais, porém são muito bem construídos. Não há exclusividade nenhuma em fazer isso, porém é um mérito da VN a forma com que ela trabalha com nossas expectativas.

Resumidamente, na história somos apenas um cara normal, bem genérico de VN como os protagonistas costumam ser (quanto mais simples, mais podemos nos identificar com eles, geralmente). Daí temos a nossa amiga de infância que a primeira vista é uma garota super animada e quer que entremos pro clube que ela faz parte, o clube de literatura. Daí nós entramos e lá tem algumas garotas que se encaixam nesses tipos de personagens, como a tsundere e a por enquanto, kuudere.

Isso é subvertido conforme descobrimos que a nossa amiga de infância está passando por problemas e percebemos nossa incapacidade de ajudá-la ou não sabemos como responder a isso, e o que resulta é a sua própria morte.


kkkkkk

A partir daí, o jogo quebra e vários glitches começam a surgir.



A experiência do mecanismo aqui é super evidente, visto que temos de mexer nos arquivos do jogo pras coisas darem certo. Vão surgindo arquivos com formatos irreconhecíveis, imagens e arquivos de texto. Se quisermos uma experiência mais rica, podemos trocar alguns formatos… descobrir algumas imagens, áudios e mensagens criptografadas. O jogo também conta com a característica da “memória”, o que nos faz seguir em frente sempre deixando algo pra trás devido as nossas escolhas. E a solução pro final da história não dá bem um rumo feliz, porém temos um papo frente a frente com uma das personagens do jogo antes disso e ela está literalmente falando com a gente, similar ao que acontece em Earthbound, mesmo que a personagem não nos tenha perguntado o nome, mas sim nos nomina como o usuário do computador e sua inteligência é tanta que ela sabe a plataforma que estamos jogando e se ela está sendo gravada.

O jogador desavisado pode até se surpreender de forma que sua resposta seja imprevisível, mas mesmo aqueles que vieram preparados podem ainda possuir um certo temorzinho quanto a estrutura desse jogo. Está tudo direcionado demais, muito interativo.


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Video Girl Ai


Pois bem, com isso quis dizer que admiro a experiência que os jogos podem proporcionar no quesito de escapar de uma mecanicidade que está ali apenas como estrutural e como ela pode ser divertida se pensada de forma orgânica. Espero ter trazido uma pequena reflexão acerca de histórias interativas e como elas encantam, influenciam a jogabilidade e acabam por marcar nossas memórias.

E vocês, que mais jogos consideram como interativos em sua narratividade e estrutura? O que acham de jogos que os envolvem, e, estaria a quebra da 4º parede se tornando uma fórmula?

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