✧ A liquidez do amor em Sojou no Koi wa Nido Haneru


"Eu morrerei sem você".
"Você eventualmente morrerá, estando ou não comigo".


Estes últimos dias estive perguntando a diversas pessoas o que elas imaginam sobre o amor. Se elas o têm como eterno, utópico, que parecem ter saído de um mangá da CLAMP ou se elas imaginam que até o amor tem prazo de validade. Muitos de nós, com pavor de nos ferirmos, crescemos em um ambiente em que somos chamados de tolos se nos apaixonarmos, em que louvamos os amores passageiros, resolvendo, por fim, guardar os nossos sentimentos e transitarmos em diversos relacionamentos sem nos apegarmos de fato. É aí que entramos em a liquidez do amor, de nosso falecido este ano, Zygmunt Bauman.


“A tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar”. - Zygmunt Bauman


Contextualizando, o amor era sólido, compromissos eram firmados para sempre, “até que a morte nos separe”, se você escolhesse aquela pessoa, você deveria permanecer com ela para sempre. Com o tempo, se opondo à essa época, o desencanto passa a surgir, as relações tornam-se danosas, o sentimento morre. Daí surge a fluidez do relacionamento. A liquidez vem da água, o elemento químico, e ela transita entre os estados sólido e gasoso. Mas, essencialmente, a água não possui uma forma palpável, é possível se afogar nela, mergulhar e se sufocar, mas não tocá-la.


Conforme Bauman, é como se o amor se tornasse um produto, assim como os celulares que já possuem data para entrarem em desuso, os relacionamentos também se tornassem assim. É aí que temos os desejos quentes e corações frios. Queremos nos afogar no amor, porém temos pavor de morrermos afogados. O medo de nos aprofundarmos em um amor faz com que busquemos alternativas que possam suprir nossas necessidades, usando como exemplo extremo o Tinder. E não são apenas relacionamentos amorosos, ágape, que esgotam. A própria filia, o próprio relacionamento entre amigos e família também perdem a solidez, enquanto o eros queima; Bauman trata dos relacionamentos de afeto num geral, o que envolve os três aspectos do amor.


Mas por que, mesmo acreditando em amor, as pessoas se forçam em relacionamentos que não funcionam? Relacionamentos de uma só parte, em que só uma pessoa alimenta, relacionamentos em que um está preso por apenas “permanecer” com a pessoa e tem medo de ferí-la?


É por isso que hoje trouxe o mangá Sojou no Koi wa Nido Haneru, que dentre suas traduções e adaptações de título, a minha favorita é a chinesa “O Amor que Renasce no Desespero”, e que também mais tem a ver com o nosso assunto e possui mais sentido literal em nossa visão ocidental. Este mangá é a sequência de Kyuuso wa Cheese no Yume o Miru, porém para este post é mais interessante capturamos principalmente sua segunda parte.


"Mas não há inabalável, eterno amor neste mundo... E estamos falando de você... então o mesmo de sempre vai acontecer. Alguém porá pressão em ti, você achará difícil negar e daí, você vai trair. Neste caso, por que não me usar? Eu serei quieto, diferente de uma mulher. Serei fácil de manter. Não custarei um centavo. Ninguém irá descobrir. Eu não engravidaria. E posso o dar várias coisas que uma mulher não. Acho que eu seria um bom amante."


Muitos mangás Yaoi são protagonizados por homens heterossexuais que se apaixonam. Dificilmente temos um personagem que já é gay, e quando o temos geralmente são muito esteriotipados ou sem nenhuma complexidade e compromisso com a realidade, pois são personagens claramente romantizados e idealizados, tão distante do que são originalmente que parecem outra existência. E quando temos um personagem gay que se apaixona por um hetero? Já sabemos que provavelmente o mangá não vale a pena ser lido, afinal quantos desses quadrinhos os homens temem receber o título de homo ou bissexuais, e preferem optar por um “eu sou gay apenas por você”, “eu te amo, mas não sou gay”? Além de que apesar de ser um conteúdo que deveria buscar a representação, torna-se um reforçador de preconceitos.


Pois bem, eu não vim os dizer que Sojou é exceção à regra,  afinal como um mangá escrito com intuito comercial, por uma mulher e voltado ao público feminino, é de se esperar que tais temas não sejam devidamente aprofundados. No entanto, mesmo que a visão dela seja ainda bastante romântica, uma de suas virtudes é a dramaticidade e a fácil identificação que podemos possuir com o tema retratado, as relações românticas em si. É aqui que os trago minhas reflexões sobre amores líquidos neste quadrinho.


Em Sojou, temos um homem gay, Wataru, completamente apaixonado por um homem hetero, Ootomo. No mangá anterior, vemos Wataru fazer das tripas ao coração para ficar com o homem com que se apaixonou, e mesmo sendo traído diversas vezes, ele ainda continua tentando fazer com que o personagem principal se apaixone por ele. No entanto, Ootomo sabe que nunca poderá responder os sentimentos de Wataru da mesma forma que ele os recebe, e como ele mesmo afirma no mangá, seu corpo pode até se acostumar com o sexo, mas o sentimento irá continuar irrecíproco. Eles terminam e voltam várias vezes, e Wataru sempre se submete às traições, até chegar O Término. O ápice do declínio é quando uma garota, Tamaki, da mesma empresa em que Ootomo trabalhava se apaixona por ele, e começa a investir nele. Após saber do término de seu relacionamento, ela consegue ficar junto dele. E daí se passa um mês, um ano… e a antiga “paixão” continua a arder, dessa vez aos dois. Teria Ootomo sucumbido às relações carnais mesmo não podendo satisfazer as necessidades amorosas do outro?


"Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro" - Zygmunt Bauman


E por fim, eles se reencontram. Wataru quer a volta, quer mais uma noite, quer que Ootomo não noive com a moça. E Ootomo sucumbe. Eles dão continuidade a incerteza de um relacionamento já muito cheio de retalhos. Mas por qual motivo? Um amor tão desgastado, inseguro, Wataru sabe que vai ser traído de novo. E Ootomo dá a palavra final: não haverá outra vez. O que Wataru e Ootomo mais temem é o que mais desejam. Apesar de desejarem o que mais possuem medo, eles não estão prontos para viver tal medo. O “medo” que existe nos amores líquidos não é o medo do outro, da pessoa ao qual nos apaixonamos, mas o medo que sentimos em relação ao próprio sentimento, e por isso rejeitamos aquilo que queremos apesar de os querer do fundo do coração. Nisso, os dois protagonistas sucumbem a uma relação em que ninguém quer ficar refém do sentimento, em que dorme-se com uma pessoa que jura não sonhar com a outra.


O relacionamento entre os dois é tão paradoxal quanto os amores líquidos: Ootomo e Wataru querem permanecer juntos ao mesmo tempo que temem um ao outro. Os corações frios, os desejos quentes, os corações quentes. Eles possuem a ânsia de se unirem ao mesmo tempo em que não querem se entregar, ao mesmo tempo em que querem se entregar. Eles se beijam e falam... "eu tenho medo de você"... O que esperar do final de um Yaoi é que os protagonistas fiquem juntos, e de fato, é o que acontece nessa história. Porém claramente não é um final feliz, ficar junto não é um sonho encantado, “eu sou gay apenas por você, nunca mais irei te trair”. É um final “verdadeiro”, em que nos apegamos às incertezas para não termos ao nosso lado uma cama vazia. É ter medo de nos comprometer ao mesmo tempo em que queremos nos comprometer.


Por favor, fiquem a vontade para corrigir esse texto na área de comentários. Eu não sou estudante de Filosofia, apenas sou interessada no assunto aqui proposto. Espero ter contribuído de alguma forma para a leitura de vocês, obrigada!


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ᴄᴏᴍᴏ ᴀᴅqᴜɪʀɪʀ


Os mangás datam entre 2006 - 2009, e sua distribuição internacional do material original em japonês pode ser um pouco difícil. Porém ele foi publicado na Europa em alemão, francês e italiano, todos disponíveis na Amazon. Sua autora, a Setona Mizushiro tem produzido desde 1985, e talvez seu trabalho mais conhecido aqui no Brasil seja Houkago Hokenshitsu (After School Nightmare). Vocês podem conferir mais trabalhos dela em seu blog.


Já os livros de Bauman podem ser adquiridos em diversos sites aqui no Brasil, pois foram publicados nacionalmente. O texto mais relevante para essa postagem é o livro Amor Líquido, porém Bauman escreveu muito mais sobre a modernidade líquida e medo líquido, é só dar uma olhada que num instante poderão encontrar mais de seus trabalhos, que possuem muita relevância para a academia.

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