✧ O Gato do Rabino

fragmento do filme

Le chat du rabbin é uma animaação francesa de 2011 dirigida por seu próprio quadrinista, Joann Sfar e por Antonie Delesvaux. No filme somos apresentados a um gatinho da Argélia, cujo dono é um rabino que se chama Sfar e que mora com sua filha, Zlabya, e um papagaio. Um dia, o gato fica tão incomodado com a barulheira que o papagaio faz e resolve comê-lo, o que faz com que ele ganhe o dom da fala. Mas, ao ser perguntado se ele comeu a ave, o gato nega. E por suas primeiras palavras terem sido uma mentira, Sfar resolve afastá-lo do grande amor de sua vida que é sua filha. O gato quer se reaproximar da moça e pede ao rabino que o ensine sobre o judaismo para que ele possa fazer seu Bar Mitzvá.

O gato se apresenta como contestador e ateu, mesmo apesar de querer ter sua dona de volta. E isso faz com que o filme se torne explicativo mesmo àqueles que não tem proximidade alguma com o judaismo. O gato perde a habilidade da fala ao pronunciar o nome supremo do deus em vão, porém com a chegada de um russo num caixão, ele descobre que só perdeu a capacidade de falar em árabe. Tal russo é um judeu que fugiu do país de navio, perseguido pelos comunistas. Ele chega na Argélia dentro de uma caixa cheia de livros judaicos em russo. Devido a barreira idiomática, ele começa a pintar sua história e pede para que encontrem Vastenov, um cruel homem da Rússia que foi exilado por talvez seu evidente gosto por sangue e atitudes nada éticas.

Vastenov é encontrado e passa a ser o tradutor nada fiel do homem e o gato. Para agradecer a ajuda do rabino, ele resolve pintar a filha dele. Nisso o mestre de Sfar aparece e reclama que sua filha está sendo pintada, por considerar aquilo como ofensivo a religião, por cultuar a imagem, porém além disso ele diz que a garota quer se entregar ao russo. Zlabya então contesta os comentários dele por considerá-los invasivos e quer que ele e o seu aprendiz saíam de sua casa, contrariando a impressão de Vastenov de que as mulheres judias são submissas e não contestam quem as ofende. Após o evento, o pintor finalmente apresenta a que motivo ele veio a Argélia: a ele lhe foi dado um documento oficial que verificava a existência de judeus na África negra, e nisso eles iniciam uma expedição por todo país para encontrá-los. A filha do rabino queria ir junto, mas fica em casa na companhia de seu primo Malka dos Leões, que a consola por não poder acompanhá-los afirmando que seria uma experiência única na vida de seu velho pai.

Na viagem eles são acompanhados por Fellag, um líder islâmico que é como um eremita interessado em cultura e que viaja de um canto a outro conhecendo o povo e as canções. No percurso, o gato é ferido por por um escorpião e precisa de recursos médicos imediatos, apesar de eles estarem no meio do deserto. Para salvar o felino, Fellag resolve recorrer, mas com receios, a um conhecido grupo de muçulmanos que habita a região. Para agradecer por terem salvado o gatinho, o pintor resolve pintar o príncipe e, mesmo um dos soldados membros afirmando que uma pintura é ofensa, uma vez que segundo ele é culto religioso a uma imagem, seu líder concorda que ele deve prosseguir seu trabalho pois considera que uma pintura é menos ofensiva que uma escultura, por não ter sombra. Eles são homens que não toleram blasfêmia e no meio de um amigável jantar, Vastenov os ofende e para haver justiça entre os grupos, o líder aceita que um duelo seja realizado. Um dos homens do príncipe é morto e, por consideração a vida que foi perdida, Vastenov é assassinado em troca.

Seguindo em frente sem Vastenov, o pintor, o rabino e o líder islâmico continuam a expedição no carro que foi herdado pelo morto, um antigo semi trator Citroen, acompanhado de um guia das viagens de Citroen. O rabino gosta tanto do guia que acaba tendo parte de sua experiência da expedição mediada por ele, não a vivenciando por completo. O gato então resolve criticá-lo por sua atitude e Sfar começa a se aventurar com seu amigo e primo Fellag.

O russo pretende aproveitar a oportunidade e conhecer a vida noturna que os senhores não conseguem mais se aventurar, e numa de suas saídas acaba encontrando uma elegante garçonete, por quem se apaixona. Ele resolve cantá-la desenhando ela, e um pintor aparece no bar e o apresenta como desenhar uma mulher negra, o mostrando ilustrações em que as comparam com macacos. Neste momento eu interrompo o texto e irei localizar o filme na história: 1920. O pintor provavelmente era um europeu. Vocês já assistiram ao filme Vênus Negra? É um filme de 2010 que aborda o olhar pseudocientífico de uma Europa que animalizava as pessoas negras e as colocavam em gaiolas, como apresentações circenses. É bastante desconfortável, e que muito me lembra a comparação que o homem fez durante o filme O russo, incomodado com a atitude racista do homem, o espanca em meio ao bar e a garçonete confessa ao gato que ela já havia se acostumado com esse tipo de comportamento.

A expedição agora perto de seu fim é acompanhada pelo mesmo grupo de antes e agora a garçonete, que acaba se apaixonando pelo pintor. Meses e meses de estrada e o rabino os faz um casamento judeu bastante simples, resumindo com a frase de que deve-se amar a si assim como se ama ao próximo. Os viajantes vão ficando cansados de procurar o destino misterioso e ficam ao aguardo do pintor, da garçonete e do gato para terminar o roteiro. Eles acabam de fato encontrando a cidade fantástica onde judeus negros habitam e eles são como figuras mitológicas que nunca tiveram contato com nenhuma outra cultura: os homens brancos ainda não interromperam a sua existência e paz. Para eles não há entendimento: os viajantes são vistos como invasores e depois que o pintor tenta os presentear com uma pintura e o gato interrompe um Bar Mitzvá, o relacionamento entre as partes só fica mais complicado. Primeiro porque para eles, alguém desenhar uma pessoa que existe é como se as roubassem a face, e segundo que... um gato invadir um Bar Mitzvá não é muito... louvável. No fim, somos agraciados com a mensagem que o gato passa para a civilização: “Vocês tem razão! Fiquem aqui. Não mudem em nada o estilo de vida de vocês! Vocês são exatamente iguais ao resto da humanidade! Só que eu? Eu prefiro os gatos!”. E assim eles partem da cidade mística e voltam como se ela nunca tivesse existido, preferindo não tornar pública a existência dela.

 
“O nosso Deus não é cheio de ódio. Ele ama a ciência e a arte e ele é feliz quando seus filhos estão em paz. Uma pena ele deixar tantos ignorantes falando em seu nome”. Fellag Sfar

O filme inteiro é na verdade uma grande mensagem de tolerância. Talvez sua narrativa seja meio confusa para o que estamos habituados, pois ele termina subitamente e aparenta não seguir bem um modelo, como se fossem os volumes do quadrinho seguidos uns dos outros, porém seu ritmo é muito bom e ele aborda vários assuntos interessantes, como podem ter percebido. Tais temas tocados são: ateísmo, judaísmo, perseguição religiosa, islamismo, preconceito dentro da própria religião, feminismo (mesmo que não tão notavelmente), racismo... Enfim, diferenças culturais. E a proposta de paz se dá principalmente pela linguagem, mesmo que com barreiras idiomáticas. Em suma, tolerância. O gato prefere se calar para não se impor nas discussões religiosas no grupo de muçulmanos do deserto, o russo explode e ocorre uma carnificina desnecessária. Assim como o quadro pintado representa tal coisa pra tal religião, pra outra, algo completamente diferente e assim vai.

O longa é bastante rico visualmente, com uma bela paleta de cores, animação fluída e cenários repletos hachuras para detalhar ainda mais o visual. Além de que você pode conhecer um pouco da arquitetura do país, afinal não é todo filme que se passa na Argélia. E para embalar a estética quase de um quadrinho vivo, o filme ainda conta com uma trilha sonora super inspirada no deserto. Ah! E um pequeno extra: Tintin aparece no filme como um jornalista que não escuta os outros!

"Ele me diz que os ensinamentos judeus funcionam através de analogias"
"Ele me diz que estou me recusando a me adentrar neles porque minha visão está nublada pelo pensamento ocidental."

E quanto ao material original? É riquíssimo! Um filme só não dava para cobrir, na verdade ele foi uma seleção de alguns dos volumes. Há muito mais sobre Malka dos Leões e Zlabya que nem acontece no longa. E também o que acontece depois do ditado francês. Porém o filme consegue trabalhar bem ao que se propõe, e devido ao seu final interrompido, dá abertura a se interessar pelo conteúdo do quadrinho.

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Trailer

ᴄᴏᴍᴏ ᴀᴅqᴜɪʀɪʀ

No Brasil, o filme foi exibido em amostras na região Sudeste, e foi muito bem dublado. A versão brasileira pode ser adquirida em DVD. Aparentemente está meio indisponível, mas ainda dá para achar para vender em lojas oficiais.

Já o quadrinho está disponível tanto no idioma original quanto na edição americana (tem tanto a versão de 5 volumes quanto a compilada).

ᴏ ᴀᴜᴛᴏʀ

Joann Sfar é francês, autor de livro, quadrinista, roteirista e diretor de filme. Seus trabalhos geralmente envolvem suas raízes no judaísmo (nas histórias do gato do rabino vocês podem perceber pelo seu alto conteúdo teológico). Seus trabalhos impressos são diversos (cerca de 150), então irei apenas citar alguns dos filmes que ele dirigiu: O Gato do Rabino, Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres e La Dame dans l’auto avec des Lunettes et um Fusil. Ele também fez uma aparição no filme O Profeta, já citado anteriormente nessapostagem, onde animou uma bela cena com trechos do livro do Kahlil Gibran. Outro de seus quadrinhos rendeu uma série animada: O Pequeno Vampiro, com 52 episódios! Aliás, ele ainda trabalhou com Kerascoët, uma dupla de quadrinistas franceses, num clipe animado para a banda Dionysos, cuja música é Te lacets sondes fées.

Hoje não vos faço uma pergunta, mas espero que consiga ter trazido um pouco sobre a importância da tolerância religiosa, ainda mais no contexto que vivemos hoje.
Espero que em breve eu possa escrever mais sobre outros aspectos do filme que acho que valem a pena serem abordados. Um dia terei o portfólio do Joann. À bientôt!
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